1a - Apresentação : Novas abordagens sobre Movimentos Sociais e Direitos Humanos
Africa Development,
Vol. 49 No. 3 (2024): Africa Development
Abstract
O projecto que desaguou no número aqui apresentado surgiu em Recife, por ocasião da III Conferência sobre Activismos em África, realizada em Setembro de 2021, em formato online devido às restrições na decorrência da pandemia. Os três organizadores deste dossier participaram dela, coordenando painéis e propondo comunicações, identificando, na temática dos movimentos sociais e das suas reivindicações e na defesa dos direitos humanos, os eixos fundamentais para construir uma ponte intelectual e de compromisso cívico entre África e o Brasil.
Em 2024, decidimos, portanto, organizar um número especial sobre assuntos relacionados com o Sul Global de língua oficial portuguesa, cientes de que se tratava de um desafio. Primeiro, a produção científica nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) está ainda aquém do desejado; em segundo lugar, o nosso desafio era ir um pouco além das representações geralmente institucionais que destes países são projectadas para fora, incluindo estudos sobre a realidade afro-brasileira. Com efeito, são inúmeras as pesquisas que, constantemente, privilegiam relações bilaterais ou multilaterais dentro do Sul Global de língua oficial portuguesa (actividades da CPLP ou dos vários governos nacionais), evitando tratar de assuntos incómodos, tais como a questão LGBTQAI+ nos PALOP, ou o fracasso de muitos dos países de língua oficial portuguesa, sobretudo africanos, na protecção dos direitos humanos dos seus cidadãos ou da população migrante. Daí, a nossa exigência de criar esta ponte intelectual de universos epistemológicos, históricos, sociológicos entre os dois lados do Atlântico e do Índico africano, cujas conexões são, hoje, mais do que nunca actuais e vivas.
Os artigos apresentados neste número partilham esta inspiração de fundo: com efeito, eles propõem uma abordagem endógena no tratamento dos assuntos, desenvolvidos mediante paradigmas relacionados com as duas grandes áreas dos movimentos sociais e dos direitos humanos, aqui privilegiadas, mas com uma perspectiva inovadora, original, até inédita. Uma perspectiva que procura não esquecer o processo de periferização a nível global de que o Sul de língua oficial portuguesa sofre, mas que realça também os desafios a nível local, relativamente, por exemplo, à actuação dos governos dos PALOP em mérito à falta de respeito pelos mais elementares direitos humanos.
Diante destes elementos, tratava-se de procurar textos coerentes com a temática geral do número, capazes de atravessar, transversalmente e de forma diferenciada, os vários países aqui considerados, cada um deles com as suas peculiaridades, mas sem esquecer o pano de fundo comum, feito de processos globais e locais de marginalização, bem como de lutas de resistência, propostas de novas epistemologias e ruptura com os antigos paradigmas, ainda dominantes.
Graças à dedicação e colaboração dos colegas e das colegas do CODESRIA, e de toda a equipa da revista Africa Development, foi possível levar a bom porto esta aposta, ainda mais complicada e desafiadora considerando que os três organizadores provêm de realidades muito diversificadas, respectivamente de Moçambique, Cabo Verde e Brasil. Este número tem outra característica de considerável relevância: a prevalência de autoras do sexo feminino. Com efeito, 6, de entre os 11 colegas que assinaram ou co-assinaram os estudos aqui apresentados são investigadoras, a maioria delas negras e africanas, um resultado inesperado, quando decidimos avançar com este dossier. Mas um resultado ainda mais importante, considerando o papel até hoje marginal ou ancilar das mulheres, em grande parte dos centros académicos africanos, assim como no Afro-Brasil, como bem recorda o volume organizado por Sapong e Amoako, em 2021, The Palgrave Handbook of Africa’s Women Studies.
Assim, foi possível criar aquelas pontes que procurávamos, quer na perspectiva de apresentação dos artigos, quer no que diz respeito às temáticas tratadas. A abordagem crítica e inovadora está presente desde o primeiro artigo do número, da autoria de colegas afro-brasileiros, a saber, Luís Soares, Rayza Silva e Ana Cláudia Rodrigues da Silva, intitulado “Vivências em Epistemologias Negras: desafios e perspectivas no ensino de Ciências Sociais na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)”. O estudo assenta numa análise levada a cabo por três investigadores (uma professora do curso de Antropologia, uma estudante de Mestrado e um doutorando da UFPE), todos eles negros, da disciplina de “Epistemologias Negras”, que procurou inovar o horizonte epistemológico da grade curricular dos cursos de Ciências Sociais da UFPE. Cursos que os autores definem como tendo ainda “um perfil conservador e pouco diverso”. Ao, escreverem este artigo, procuraram repor autores e epistemologias negras, durante muito tempo esquecidos ou negligenciados pelas ciências sociais “oficiais” brasileiras, em que a “branquitude” representa, segundo defendem os autores, não apenas uma condição física, mas também e, sobretudo, um legado histórico e cultural que eles estão procurando ultrapassar.
O diálogo com este trabalho é visível em todos os outros estudos aqui apresentados, que oferecem uma panorâmica de alguns dos PALOP (nomeadamente Angola, Moçambique e Cabo Verde), com perspectivas epistemológicas diversas, mas com um ponto comum: desconstruir grande parte dos estereótipos que um conhecimento em larga medida preconcebido e “direccionado” (seja por parte de doadores internacionais ou de governos locais, em muitos casos autoritários) impôs à atenção internacional, deformando as realidades que se vivem nos PALOP hoje.
É o caso do texto de Osvaldo de Carvalho Cruz, intitulado “Possibilidades e limites ao exercício da Liberdade Sindical em Cabo Verde de 1975 a 2014”. Encaixando-se na perspectiva da tutela de direitos humanos, hoje cada vez mais esquecidos e passados de moda, este estudo adopta uma perspectiva histórica, visando compreender de que forma as limitações às liberdades sindicais foram colocadas, quer por parte dos vários governos que se sucederam à liderança do país, quer por parte de sujeitos económicos contrapostos à classe dos trabalhadores. Como o autor explica, o exercício da liberdade sindical é um direito relativamente recente em Cabo Verde, datando da viragem democrática da década de 1990, que conduziu à divisão da então Central sindical única (UNTC-CS) em sete movimentos de defesa dos trabalhadores, em muitos casos antagónicos entre eles. Apesar da abertura democrática, e da consideração internacional que Cabo Verde adquiriu como país democrático e tolerante, o autor realça que este arquipélago ficou entre os países violadores dos direitos sindicais da CILS (Confederação Internacional dos Sindicatos Livres) entre 1992 e 2000. Alguma melhoria parcial foi alcançada nos 15 anos seguintes, mas ainda com limitações significativas. Esta conclusão mostra como as dinâmicas sociais reais se distanciam do preceituado na constituição e nas leis laborais: assim, mesmo um país africano modelo como Cabo Verde, merece ser alvo de análises críticas, sobretudo a nível do gozo de direitos fundamentais, tais como os de tipo sindical.
Ainda no âmbito dos direitos fundamentais, das suas violações e das lutas para que elas sejam ultrapassadas deve ser enquadrado o artigo da autoria da Maria Elvira Carlos Chipe, da Rosana Albuquerque e da Maria José Núncio, intitulado “A protecção social e a sua evolução no direito internacional: Um olhar sobre Moçambique”. O artigo reflecte sobre a protecção social. Fá-lo mediante uma análise dos mecanismos de protecção social de Moçambique, em que o sistema “informal”, de base comunitária e familiar supre as lacunas do sistema formal, num país onde a taxa de pobreza disparou, ao longo dos últimos anos, tocando mais de 60 por cento da sua população, segundo estatísticas nacionais oficiais. O artigo conclui, apontando para que o governo de Moçambique trace uma estratégia mais realística e coerente com a complexa realidade do país, tornando mais eficiente e abrangente o sistema formal de protecção social.
De direitos e de ambiguidades, legislativas, políticas e sociais, fala Laura António Nhaueleque no seu estudo sobre “Uma longa ambiguidade: minorias sexuais em Moçambique entre tolerância e marginalização”. Um assunto, este, pouco abordado, por vezes um verdadeiro tabu no panorama dos estudos sobre direitos humanos em Moçambique e, em geral, em todos os PALOP, assinalando, neste sentido, uma diferença considerável com a realidade brasileira. A autora procura, no seu estudo, focar sobre a LAMBDA, a principal (e durante muito tempo única) associação moçambicana de direitos LGBTQIA+, fundada em 2006, mas que ainda não conseguiu o reconhecimento formal por parte do governo daquele país. A autora procura desvendar, com o auxílio de uma entrevista a um dos líderes da LAMBDA, as ambiguidades que estão por detrás de uma relação em que a LAMBDA colabora com o governo em várias vertentes, principalmente com o ministério da saúde, mas sem que este a reconheça do ponto de vista formal. Um exemplo evidente de ambiguidade e incoerência por parte das autoridades locais moçambicanas.
Ainda na perspectiva crítica se insere o texto seguinte, sobre as organizações não governamentais e o seu complexo relacionamento, quer com os doadores internacionais, quer com as instituições públicas moçambicanas. É disso que tratam Ernesto Nhatsumbo e Luca Bussotti. No seu artigo, intitulado “Organizações da Sociedade Civil em Moçambique: a “transmissão da dependência” e o papel das entidades intermediárias”, os autores debruçam-se sobre um assunto não muito abordado, na vasta literatura sobre sociedade civil em Moçambique: o das “organizações intermediárias”, tais como o MASC e a JOINT. Estas colocam-se no espaço político e financeiro entre doadores – geralmente ocidentais – e associações locais de base, recebendo e distribuindo fundos consistentes, e actuando, segundo os autores, como prossecução do mecanismo de dependência externa da maioria das ONG daquele país. O resultado é que as organizações da sociedade civil moçambicana não só não conseguem, na sua maioria, ser sustentáveis do ponto de vista financeiro, mas sobretudo sujeitam-se, em termos de agendas e sua implementação, aos ditames dos doadores e das entidades intermediárias como o MASC e a JOINT, desenvolvendo cada vez mais a sua dependência externa, sendo incapazes de propor uma agenda própria, em consonância com as exigências das comunidades em prol das quais deveriam trabalhar.
O artigo do Gilson Lázaro remete-nos para o contexto angolano e as dinâmicas da sua juventude. No seu artigo, intitulado “Dinâmicas dos movimentos juvenis: Protestos de rua e Contestações nas redes sociais em Angola”, Lázaro procura estudar como as acções colectivas com conteúdo “novo”, de jovens angolanos, rompem com a tradição autocrática do país, propondo perspectivas diferentes. De forma específica, o texto discute momentos identificados pelo autor como centrais nas dinâmicas sociais e políticas angolanas: por um lado, os relativos a datas simbólicas da história nacional, e, por outro, os que têm a ver com movimentos espontâneos, dois pré-eleitorais, e um eleitoral, que inicialmente se manifestaram nas redes sociais. O artigo conclui destacando a crescente maturidade destes movimentos liderados por jovens que fazem dos seus direitos constitucionalmente estabelecidos a alavanca para exigir maior transparência eleitoral e o respeito pela vontade do povo em escolher os seus governantes. Ao mesmo tempo, esses movimentos concentram-se em revisitar a memória e desafiar o monopólio da historiografia oficial, que agora está sendo desconstruída.
Acreditamos que este número especial sobre os PALOP e Afro-Brasil represente um importante ponto de referência para quem queira estudar questões relacionadas com movimentos sociais e direitos humanos fora das retóricas, por vezes pomposas, outras vezes de cunho “institucional”, presentes em vários escritos e publicações. O uso da perspectiva crítica comum a todos os textos aqui publicados assentou numa ideia de base: a de que processos complexos e relativos a realidades ainda não suficientemente estudadas precisem de abordagens e metodologias inovadoras e multifacetadas, ou seja, do tipo não reducionista ou positivista, centradas no binómio causa- impacto. A expectativa é de que os artigos aqui apresentados possam fomentar interesses, debates e polémicas, devido aos temas que tocam e à forma como os tocam. Se for assim, significaria que teremos alcançado o principal objectivo deste número.
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